Cinzas...
Amanhecemos abraçadas no gramado da mansão e duas horas depois já estávamos em Guaratuba bebendo e seguindo trios elétricos. O axé já era um som agradável e familiar. Estava viciada na eguinha pocotó.
Tantos dias longe de casa também tinham seu aspecto bastante negativo. Sem banho, toalhas e calcinhas limpas, sem qualquer privacidade para ir ao banheiro. Em último caso tive de apelar para as cabines químicas instaladas ao redor da orla, mas Van, sem noção ao extremo, se não defecava no mar, o fazia em algum matagal.
-Cagar não me prende em casa. Animal não caga em qualquer lugar? Pois então... – riu e esfregou o traseiro no gramado – E tem gente que deixa de viver a vida por causa de uma coisa tão fácil de se resolver.
-Você é nojenta, Van.
-Ê MÁRCIO CAGÃO...
Márcio tentou se esconder, mas foi encontrado. Era o melhor amigo de Vanessa desde a infância, apesar de ele ser 3 anos mais jovem.
-O cagão desceu a serra e eu nem fiquei sabendo.
Rapidamente soube que Márcio e a família estavam vivendo um estado de miséria profunda e Mano Jaburu, como era mais conhecido, ainda estava sofrendo por namorar Cristina e os pais de nossa colega serem totalmente contrários ao relacionamento, separando o casal, o que fez Márcio perder a cabeça e cometer seu primeiro assassinato. Para não ser preso, fugiu.
-Eu posso te ajudar, mas é pra ficar com o bico calado.
Na segunda-feira à noite voltei para Curitiba e resolvi passar o resto do feriado pousando no barraco onde Van morava com a numerosa família.
Vanessa e Márcio residiam na favela dos coxudos, relativamente próxima ao nosso colégio e também um dos locais mais perigosos da cidade, com estatísticas de duas mortes por dia e a expectativa de vida entre os jovens era assustadora: raramente se atingia a maioridade. Van, no auge dos 19 anos, ia contra as regras, embora levasse uma vida bastante promíscua e arriscada.
Àquelas alturas eu tinha plena consciência da reação de mamãe e por isso mesmo não queria colocar os pés em casa novamente. Van me incentivava mesmo a não voltar.
-A porta da minha casa ta aberta pra você, gatinha. Muda pra lá, vira coxuda e viva pro funk. A vida é muito curta pra chororô... – Van me ofereceu cerveja
Estávamos novamente em um baile funk e nesses dias de intenso fervo eu sequer pensei em Guilherme, até porque estávamos brigados e eu nem sei se depois da discussão de domingo nos falaríamos novamente.
Ainda assim, na quarta-feira de cinzas, precisava regressar ao mundo real, ao meu velho lar e rever Meire. Não foi novidade ser recebida com uma forte bofetada no rosto. Até por vezes merecida.
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