Após o falecimento de Aline nada diferenciava a semana de seu fim. Dias insossos, longos, inconclusivos. O trajeto consistia em casa-escola-casa. Até interagir com os parentes começou a ficar estranho porque minhas primas já estavam saindo à noite, namorando e eu mal podia dar uma volta no parque. Se eu queria ir ao shopping, mamãe ia junto. Para comprar roupas era um verdadeiro inferno porque ela odiava que eu deixasse os braços a mostra.
-Já tem os braços gordos e fica se expondo. Depois não quer que riam de você no colégio.
-Cássia é um palito. Nem come.
-E você só come porcaria.
Minha mãe deveria estar ciente de que entre 13 e 15 anos o corpo feminino sofre grandes alterações. A tábua cede espaço a formas de adulta com cintura definida, quadris arredondados, seios quase no tamanho definitivo.
Aos parentes e conhecidos eu estava me tornando uma legítima mulher, apesar de ter estacionado em 1.63 de altura. Pesava cerca de 53 a 55 quilos e parecia um pouco cheinha por conta do estirão.
Se dependesse de Meire eu viveria uniformizada ou usaria calça tactel, que no caso acentuaria os defeitos os quais tanto criticava.
Como a roqueira que me sentia, adotei o preto como minha cor. Jeans, baby look preta com logos de bandas famosas, lápis negro nos olhos, batom vermelho e blush me davam a impressão de já ter 15 anos. Meire odiava meu look.
-É bom que use mesmo preto pra ver se engana o tamanho dessa sua bunda aí. Até parece que levou um soco no olho usando essa sombra ridícula. Não se lembra do que disse a respeito de batom vermelho? Você é caso perdido mesmo...
Os garotos no colégio me chamavam de baranga e as meninas me zombavam. Sobretudo Cássia.
-Levou porrada na boca?
-Não. – retruquei – Por quê?
-Você fica mais feia ainda usando batom vermelho. Fica parecendo uma puta.
-Olha quem fala.
-Morre de inveja só porque nunca vou te dar moral, sapatãozinho idiota.
-Eu já disse que não sou lésbica.
-É sim e eu disse.
Aos padrões da OMS eu era saudável. Uma aberração aos olhos dos outros, em frente ao espelho. As olheiras das lágrimas embaladas por baladas tristes eram possíveis de ser atenuadas com corretivo e base. As cicatrizes do abuso emocional me deixavam cada vez mais próxima do chão e distante de Deus. Eu nem mesmo rezava. Vivia, sendo curta e grossa, no piloto automático.
Quando Adolfo tentou se suicidar após uma séria discussão com o padrasto, achava que era covardia não enfrentar a vida. No entanto, dois anos e muitos xingamentos depois, cogitava ingerir um coquetel de comprimidos para não encarar o Ensino Médio, tampouco a formatura do 8º ano.
Só de me imaginar tendo que usar roupa de banho e dividir a piscina com as outras meninas já sentia pavor. Dentro daquele colégio, Cássia, o palito dos cabelos longos, era a deusa com olhos claros, corpo escultural e porte de modelo.
Mesmo que eu argumentasse o porquê de não querer ir à viagem e participar da festa de formatura, mamãe pagou rigorosamente as parcelas do contrato, me fez até tomar um shake dietético com gosto de serragem para caber em um vestido ridículo que acabou me deixando mais ‘cheinha’ ainda.
-Você tem que ser normal igual a essa Cássia que fica com meninos, sai com as amiguinhas, ouve música de gente normal e você vai SIM a essa viagem pra ver se assim se endireita na vida.
-Mas mãe, todo mundo me odeia. Tem ideia do que é passar 7 dias dividindo recinto com pessoas que nem gostam de você, que falam mal, debocham, humilham...
-Isso é tudo coisa da sua cabeça.
-Não é.
-É sim e um dia eu vou te internar por inventar tantas mentiras.
Aline ainda me fazia falta. Já fazia pouco mais de um ano que não estava mais entre nós. Difícil ano, ressaltando entre vírgulas, nós atravessados no alto da garganta e solitários intervalos silenciosos na biblioteca, um dos poucos redutos em que Cássia não poderia fazer nada contra mim.
A viagem foi realizada dois dias após meu aniversário de 14 anos. Pelo menos 4 horas dentro do ônibus. Saímos de frente do colégio por volta das 06h00min, então escolhi um lugar próximo a janela, sentei-me e adormeci, despertando quando o céu já estava claro, embora nublado e feio. Ao meu lado nem mesmo um dos renegados.
Minha companhia foi o walkman e alguns cds de rock os quais deixei na minha bolsa para tornar a estadia naquele hotel um pouco menos. Cássia e seus amigos estavam felizes, até mesmo tirando fotos, cantando, fazendo piada. Eu estar ali ou não era irrelevante. Se da minha presença se recordavam, evidente que era para chacotear.
Antes de nos instalarmos para tomar o café colonial, a coordenação da escola convocou a nós estudantes que comparecêssemos ao saguão do hotel onde receberíamos as chaves de nossos dormitórios e para minha desagradável surpresa teria de dividi-lo com Cássia.
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