-Senhora, por favor. Aqui não é o local e nem o momento para isso. – aconselhava um dos muitos tios de Aline
Segurando ferozmente meu braço esquerdo, Meire estava se sentindo a estrelinha do velório e me arrastando para longe dali. Nice, enlutada, tentou persuadir mamãe a me permitir dizer o último adeus a Aline. Era mais do que justo.
-Não. Tita tem que estudar e precisa ir para casa. – Meire interrompeu Nice
-Meire, veja bem... Tita acabou de perder a única amiga que ela tinha. Não pode se colocar no lugar dela por pelo menos um minuto? – abraçou-me – Ela está sofrendo muito e precisa do seu carinho, não de pancadas. Acredita mesmo que Tita vai te respeitar a base de surras, humilhações e xingamentos?
-Meu método tem sido muito eficaz até agora. – tirou-me dos braços de Nice – E não fique aí de abraço com estranhos, Tita.
-Nice não é uma estranha.
-É sim e nós vamos embora.
-Eu não quero ir.
-Pelo menos a deixe acompanhar o enterro, dona Meire. – suplicou uma tia – Aline e Tita foram grandes amigas e tenho certeza de que Aline, onde quer que já esteja, adoraria saber que todos aqueles que amava estão reunidos, ainda que por esse motivo triste. Custaria esperar mais um pouco?
Mamãe me arrastou pelos cabelos até o carro e sem medo admitiu que gostaria de que ao invés de Aline a morta fosse eu. Recíproco. Eu trocaria Meire por Aline sem hesitar. Meire jamais me amaria. Até os 18 anos eu viveria sob o mesmo teto daquele insensível monstro que não se comovia com nada nem ninguém.
Não tive apetite para refeição nenhuma. Nem mesmo Seu Madruga, meu ídolo, me faria rir. Meu travesseiro foi à única companhia naquela noite a qual adormeci banhada por lágrimas. Olhos inchados e ausência de palavras. Com minha mãe não havia um diálogo, um elogio, muito menos um momento de ternura com o qual eu sonhava.
-Vê se a partir de hoje toma jeito na vida e para de me fazer passar vergonha. – era tudo que tinha a dizer
Desci do automóvel, bati com força a porta do passageiro e pude ouvi-la me xingar, no entanto, anestesiada e deprimida, precisava continuar estudando ou então prolongaria os anos de sofrimento no colégio e ofereceria motivos plausíveis para que Meire implicasse comigo mais do que já o fazia.
Na semana anterior, Aline e eu lancharíamos nossas bolachas recheadas com refrigerante sentadas no gramado. Minha festa de debutante não teria graça sem ela e a formatura da 8ª série seria um porre, mas não poderia refazer a realidade.
Em decorrência da greve passaríamos ter aula aos sábados para repor o conteúdo perdido durante as férias forçadas. Eu sequer tinha suporte emocional para sobreviver àquela semana, apenas amostra dos meses que sobreviriam. Ninguém se importava com as ruinas do meu mundo interior, muito menos se comoveria com minhas lágrimas. Aliás, eu deveria por bem suprimi-las. Em vão.
Aline amava Spice Girls assim como eu. Toda vez que ouvíamos Goodbye ela apanhava a escova de cabelo e punha-se a cantarolar em frente ao espelho, ainda que não perfeitamente dominasse a letra. Goodbye era sua música preferida. Na aula de inglês daquela dolorosa terça-feira, a professora pediu para que nos reuníssemos em grupos a fim de traduzir a canção aplicando nossos conhecimentos sobre o idioma até então.
Era deprimente voltar a fazer todos os trabalhos sem companhia. No início do ano éramos um inseparável trio, resumido a dupla após a Páscoa. No feriado de Corpus Christi perdia Aline e voltava a ser sozinha como no primário. Na classe nem mesmo os renegados aproximavam-se de mim.
Controlei o choro enquanto pude, saindo da sala de aula quando me senti pequena demais para continuar lá. Sentada na cabine 2 do banheiro feminino, urrei de tristeza, chamei por Deus em voz alta, perguntando por que estava me castigando tanto, tirando de mim todos que me amavam. Almejava uma resposta.
Para Meire era inconcebível perder um décimo sequer. Eu deveria ser apenas uma calculadora ambulante e ver meus colegas apenas como oponentes e não amigos. Eu estava pouco me lixando para meio ponto na média. Trocaria minha aprovação para ouvir a voz de minha amiga novamente.
Trinta minutos depois, intervalo, eu já era o sapatão da instituição.
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