Resumida a um olhar indiferente e opaco, embora as lágrimas me provassem que ainda existia vida. Sim, podia haver, mas era uma infinita tragédia a qual, se possível fosse, adoraria cerrar meus olhos e só despertar quando tudo voltasse ao seu devido lugar, se é que algum dia esteve.
As horas ganhavam a amplitude de milênios e exageros à parte, sentia-me a beira de um precipício. Com a explosão da greve dos professores exigindo reajuste em seus salários, nossa escola ficou sem aulas por mais de um mês, sendo as férias forçadas naquele ano.
Ir à aula não era exatamente o melhor programa do mundo. Entretanto, era mais rendoso que aguentar as histerias de mamãe me retrucando aos berros e em seguida me pedindo para fazer silêncio porque Horácio precisava dormir.
Horácio e mamãe ainda estavam casados. Julgo que era uma relação de fachada porque nunca os vi unidos, de fato, apesar de mamãe ostentar a aliança dourada. Horácio trabalhava a noite e dormia praticamente o dia todo. Eu só fazia refeições com ele no fim de semana e também não posso reclamar porque ele nunca ergueu a voz comigo e às vezes amansava a implacável fúria de mamãe.
Queria cozinhar e mamãe não permitia. Em distintas ocasiões Meire reclamava que eu era inútil e não sabia fazer nada, mas tudo a que me prontificava a ajudar, Meire rezingava e desmerecia.
-Mulher não serve só pra ficar se agarrando em beco. Tem que saber fazer alguma coisa da vida.
-Eu não sou piranha.
-É e já provou.
-Só porque namorei um garoto não quer dizer que seja uma piranha.
-Eu na sua idade era a primeira da classe e brincava de boneca.
-Se não sabe, eu sou a primeira da classe e não me desfiz das minhas bonecas.
-Mas já ta grande demais pra brincar.
-Não entendo... Primeiro não posso namorar porque é ‘coisa de piranha’, mas também não posso brincar porque já estou ‘grande demais’. Cadê o equilíbrio?
Certamente no braço do sofá. Esse tapa doeu.
-Ai de mim se falasse assim com minha mãe. Apanhava de chicotada. – Meire e seu nauseante moralismo
Da maneira como ela se referia, dava a impressão de que eu era promíscua igual Cássia e as amigas. Mal sabia ela que eu, apesar dos pesares, ainda era, intrinsecamente uma criança. Crescer estava sendo um doloroso processo, uma metamorfose e como toda lagarta que se preze, sentia medo de sair do casulo.
De plantão nos telejornais locais, rezava para professores e governo entrarem em acordo porque passar os dias inteiros com mamãe estava me jogando no fundo do poço cada vez mais.
Aline ainda estava morando com os tios e passava os fins de semana com a mãe, por isso mesmo não podia me salvar. Odiava Meire cada vez mais, mesmo tendo a plena convicção de que execrá-la só me enfraquecia.
Quando estava assistindo ao noticiário do jantar e o âncora informou o fim da greve, mal consegui dormir de tanta ansiedade porque por mais ruim que fosse suportar as chacotas da Cássia e a saudade de Adolfo, evidentemente era melhor que ser xingada por minha própria mãe 24 horas por dia.
-Sua mãe ta cada vez pior, né? – questionou Aline ao saber das minhas ‘férias’
-Sem palavras, Aline. A cada dia que passa fica mais difícil aguentá-la.
-Já pensou em entrar em contato com seu pai?
-Ele me odeia.
-Tita, eu sei que não sou da família, mas não acho que seu pai tenha te enganado. Sua mãe é perversa o bastante pra arquitetar esses planinhos diabólicos pra despeitar você.
-O que você ta querendo dizer com isso?
-Nada demais, Tita. To falando besteira. Esquece o que eu disse.
-Conheço você, Aline. – estávamos dando voltas ao redor da quadra na aula de Ed. Física – Alguma coisa você ta escondendo.
-Eu pensei que já soubesse que sua mãe telefonou para Sérgio...
-Te-telefonou?
-Na verdade precisei dizer que queria falar com Miriam. Adolfo está de castigo.
-Por minha causa? Mas precisavam impedi-lo de vir ao colégio? Ele ta se prejudicando faltando tanta aula desse jeito.
-Sérgio e Sonia descobriram o namoro e transferiram Adolfo para o colégio militar...
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