Adolfo e eu namorávamos todos os intervalos e Aline continuava sendo nosso pombo correio, nos ajudando sempre que podia e colorindo nossas manhãs com suas anedotas dos fins de semana. Os meus sem Adolfo costumavam arrastar-se, salvo quando podíamos nos ver a um alto preço e ainda assim válido.
Ao menos todos na classe estavam em paz, o que era muito bom porque não precisava temer emboscadas, bordoadas e xingamentos. Nessa época quase não se debatia sobre bullying, consequências e sequelas. Aliás, grande parte dos adultos considerava que uma conversa coesa tudo resolvia e o pior de tudo: se contássemos a coordenação do colégio, a situação se agravava ainda mais. Era um beco sem saída.
Duas semanas após o carnaval, uma surpresa desagradável: Cássia voltou e duas vezes pior do que já era. De manchadinha passei a ser gordinha.
Eu pesava 38 quilos no ano anterior e em decorrência das alterações hormonais, pulei para 44. Cássia tinha uma bajuladora obesa e não implicava. Eu era sua vítima favorita, até porque ao longo dos anos meu ponto fraco lhe servia de incentivo para prosseguir com as chacotas.
Aline e Adolfo não tinham voz. Não concordavam com Cássia e, no entanto, também não poderiam me ajudar, especialmente Adolfo, discriminado até mesmo por existir.
Eu estranhava meu novo corpo com mais formas. Nunca fui de importar com peso, medidas, manequins, até porque era uma tábua que podia ingerir quase tudo que queria e nunca engordar. Para Adolfo eu era linda e Aline confessava que mal via a hora de encorpar, pois já aos 13 ainda parecia ter 11 e detestava isso.
-Cássia está com inveja! Ela quer te destruir porque você não precisa parecer uma morta viva para esbanjar beleza. – Aline aconselhava – Ficar sem comer vai ser roubada e eu lhe digo um ensinamento bem valioso de mamãe: quanto mais você se importa, mais isso persiste.
-A Rita é obesa. Por que ela não fala da Rita e sim de mim?
-Porque a Rita não lhe desperta ‘ameaça’. Você sim. – Adolfo tentava me explicar
-Eu não quero o namorado dela. Tenho o meu.
-Um dia você vai entender...
Nunca entendi o porquê de tanta aversão. Logo na 1ª série ela sempre armava alguma arapuca para cima de mim. Quando ganhei de meu pai o primeiro conjunto de canetinha de 24 cores, resolvi leva-las para desenhar no colégio e elas sumiram após o intervalo. A servente que me protegia naquele ano viu Cássia e suas amigas entrarem na classe e furtar meu pertence.
-Eu vi aquela menina meio ruiva abrindo tua mochilinha. Quando cheguei, elas deram uma disfarçada e falaram que você esqueceu o lanche. Pra ver até onde elas iriam, me escondi e vi a ruiva jogando as canetinhas no lixo e fechando a sacola.
Minha mãe vistoriava diariamente o material e ao não encontrar tudo completo, xingou-me de irresponsável, esbanjadora e me espancou.
No dia seguinte eu pedi ajuda à direção, porém, infelizmente, Cássia chorou, o que comoveu a coordenadora.
-A Tita ficou com inveja de mim, tia e por isso sumiu com minhas canetinhas só porque a mãe dela não quis comprar.
Resumindo: além de ser chamada de invejosa, saí no prejuízo porque a zeladora perdeu o emprego, mamãe teve de comprar um conjunto de canetinhas a Cássia que já as tinha e eu, claro, levei mais uma bela surra de cinto.
Ninguém de nós entendeu por que a Cássia retornou ao colégio, porém, em decorrência das comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, nossa escola participou ativamente dos concursos de redação. Como nunca venceria Cássia com beleza e popularidade, só me restava mesmo usar o cérebro.
As melhores frases, poesias e textos seriam expostos em murais por todo o colégio e concorreriam a prêmios fora deste. O melhor, obviamente, seria mostrado na televisão.
-Vai participar de idiota. Li teu diário. Nada do que você escreve tem nexo.
-Não tem nexo porque você não lê direito. Nunca ouviu falar em poesias?
-Aquilo que você faz não é poesia.
-E o que você faz não é certo: é falta de respeito invadir o espaço dos outros.
Mesmo com o desprezo maternal por minhas palavras, virei a noite acordada para redigir um texto digno de premiação e na manhã seguinte, mesmo com as pernas tremendo, resolvi mostra-lo a velha Naná que se sentou a mesa da sala dos professores, apanhou os óculos, leu, releu e um tanto ríspida, suspirou devolvendo-me o papel.
-Já li melhores, mas não está ruim.
Apanhou de volta a folha de caderno, tirou do bolso do jaleco uma caneta vermelha e grifou o que poderia ser corrigido.
-Preciso refazê-lo?
-Não exatamente...
-Pensei que acharia bom. Fiz tudo aquilo que a senhora disse na aula.
-Não vou dizer que ta bom não, mocinha. Nunca estará suficientemente bom. Se eu passar-lhe a mão na cabeça, nunca progredirá. – um pouco receosa, baixou a guarda – Já pensou em ser escritora?
-Não... – disfarcei porque estava prestes a chorar
-Caso queira escrever, precisará de ajuda.
-Minha mãe jamais deixaria. Ela diz que ser escritor não dá futuro.
-Em partes ela está com um pouco de razão. Não são todos que apreciam um bom livro. Para muitos a tv já está de bom grado, mas ser escritor é uma profissão nobre como qualquer outra.
Naná não me parecia ser uma senhora perversa e ardilosa e sim apenas uma professora séria, dessas que não dá muita brecha pra aluno.
-Faça o seguinte: corrija este texto e me entregue até o último horário.
-Sim, senhora.
E o fiz. Porém, quando chegou a hora da premiação, uma bomba: o texto de Cássia foi eleito o melhor de toda a escola.
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