Raramente os discentes mostravam algum sentimento por mim sem ser indiferença. Podia ser a melhor aluna e isso aos olhos deles nada representava.
-Lamento tanto pela perda de sua amiguinha.
Apesar de turrona e austera, Naná foi à única que demonstrou humanidade para comigo naquele doloroso e confuso instante da minha vida. Se segunda-feira já é horrível por nos remeter a longa semana que nos aguarda, quanto mais saber que a partir daquele dia caminharia sozinha.
-Meus sentimentos, criança. – a senhora se aproximou de mim e afagou rapidamente o alto de minha cabeça
Os outros mestres continuaram fingindo não me ver, embora soubessem que Aline era minha melhor e única amiga dentro e fora daquela instituição. Aline era meu contato com o mundo, o feixe de luz que não me deixava perder a fé nem no amor pela vida.
-Os estudantes estarão liberados após o intervalo para comparecer ao velório de Aline Gisele Pacheco. – anunciou o professor de geografia, que passou os olhos no trabalho e disse – Não precisava ter refeito. Eu li com atenção e percebi o quanto você e Aline se esforçaram para apresentar. Às vezes essa turma passa um pouco dos limites com vocês duas.
Às vezes? O tempo todo, eu diria...
Meu peito chiava de tanta dor e mesmo abatida eu não conseguia chorar porque o primeiro estágio do luto é a profunda negação. No 2º horário Aline entraria na classe, arrastaria sua carteira para grudar a minha e me contaria todos os detalhes da viagem e eu realmente ansiei por isso, aguardei acreditando na própria mentira.
2º horário. Chegaram às amigas de Cássia, atrasadas como sempre, fazendo bagunça, gritando escandalosamente para serem sempre o centro das atenções. A involuntária alegria que esbanjavam ia totalmente contra a indignação do momento.
-Lembra aquela festa, miga? Transei com três na mesma noite. Serviço completo. – Cássia acrescentou rindo – Me senti até uma virgenzinha lá naquela cabana.
E minha mãe me execrou por ter me visto aos beijos com o menino que ainda amava. Será que Adolfo já sabia da verdade? Como teria reagido? Perguntas demais para tão poucas evidências.
3º horário. Rumores e aflições. Concentração abaixo de zero. Rabiscos no caderno, olhos fitados em direção ao quadro-negro e pensamentos dispersos em minhas próprias teorias as quais vergonhosamente fui reprovada. A única morte de alguém próximo a que tinha conhecimento foi do meu avô paterno Roberval quando eu estava com 2 anos de idade.
Antes mesmo das 10h00min eu, por não ter dinheiro para o passe, pedi carona à prof Naná e ela concordou, deixando-me até sentar no banco do passageiro. Ela gostava de ouvir a rádio educativa onde só se tocava MPB e talentos locais. Chato. Para uma garota de 12 anos, muito possivelmente.
-Tem muita gente talentosa que nem chega a ser reconhecida. – Naná puxou um assunto qualquer
-A senhora gosta desse tipo de música?
-Elas ainda não fazem sentido a você porque ainda precisa viver um pouco mais.
-Refere-se a Chico Buarque, Caetano e afins?
-Percebo que é uma menina diferente daquelas pentelhas da sua idade. Realmente lamento que tenha perdido sua melhor amiga.
-É... Aline é... – era difícil conjugar que Aline faria parte do passado – era minha única amiga de verdade.
-Se não é fácil perder um amigo na minha idade. – já passava dos 50 anos de idade – Quanto mais na sua, quando tudo ainda está começando. Mas a morte é parte da vida e uma das poucas certezas que atrevo a dizer que tenho.
Aquele papo sombrio e chato só me fazia crer que quando descesse daquele carro e chegasse à capela, encontraria Aline precisando de um abraço meu e nós duas enfrentaríamos perdas e desilusões juntas como sempre prometemos estar.
Entrei caminhando devagar, com Naná me conduzindo e tentando conter as lágrimas. Três caixões estavam sendo velados. D. Nice, debruçada a urna do meio, chorava compulsivamente. Quando aproximei-me e vi minha linda amiguinha vestida de branco, com os olhinhos fechados dormindo tão profundamente, não consegui conter as lágrimas.
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